
Não obstante o provincianismo e a vida paroquial, surpreendentemente, o Crato, nos anos 1960, era uma cidade bem servida de jornais e revistas.
Então, podíamos ler o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã e, principalmente, o jornal Última Hora. E nós líamos.
Geralmente, à noite, quando os jornais chegavam e eram vendidos, na praça Siqueira Campos. E, assim, ficávamos sabendo das violências praticadas pelos militares que haviam tomado o poder. Sabíamos das prisões, torturas, aposentadorias compulsórias, sequestros e mortes de trabalhadores, líderes sindicais, estudantes, intelectuais e políticos.
Líamos também a Revista Civilização Brasileira, além de livros e panfletos que eram passados de mão-em-mão pelos amigos. Além desses, também era possível ler jornais mais engajados, como o Brasil Urgente que, ainda me lembro, eram vendidos à noite na calçada do Café Líder.
Apesar da violência e do obscurantismo inerentes a qualquer ditadura, o regime militar implantado no Brasil ampliou nos jovens a curiosidade e o desejo de participar.
Aumentou a vontade de ler e de criar. Líamos para conhecer o Brasil –sua história, seus problemas sociais. Queríamos transformar o país, acabar com a miséria e as desigualdades. E o caminho para isso era combater a ditadura militar e implantar uma verdadeira democracia.
Na verdade, poucos sabiam, de fato, como seria esse Brasil do futuro. Apenas acreditávamos que era necessário fazer uma revolução! A polarização União Soviética versus Estados Unidos da América nos indicava o caminho.
Por isso, criamos jornais murais nos colégios Diocesano e Estadual, jornais mimeografados, como o jornal Nossa Opinião e jornais impressos como o Vanguarda e o Radar.
Nesses jornais publicávamos nossos artigos, poemas e contos, cujos conteúdos abordavam, principalmente, os problemas sociais responsáveis pelas desigualdades e pelo atraso do Brasil.
Também fizemos teatro e música. Ainda me lembro de duas músicas que compusemos (Zé Narcélio e eu). Como não toco nenhum instrumento, eu sempre escrevia as letras.
Uma dessas músicas se referia à guerra do Vietnam. A letra, salvo algum esquecimento, era assim:
Nasce o dia
Vem o sol
Passa a tarde
Cai a noite.
Lá no arrozal imenso
Sob o fogo da napalm
Morre gente.
Só porque
Outro dia nascer
Mais um homem
Outro homem
Morrerá no arrozal.
Morre o dia
Vai o sol
Passa a tarde
Cai a noite.
Lá no arrozal imenso
Sob o fogo da napalm
Nasce gente.
Só porque
Outro dia vai morrer
Mais um homem
Outro homem
Nascerá no arrozal.
Outra, fazia parte de uma peça de teatro, de minha autoria, que se perdeu. Dela, conservei na memória esta música, cuja melodia denuncia de imediato a influência de Chico Buarque.
Como a peça, a música se chamava Miguel e os três pães. Tratava da história de um trabalhador que roubou pães para alimentar a família e, por isso, foi preso:
Miguel
Cuidado com a vida
Cuidado com a noite
Cuidado com o dia
Cuida de Maria
Que a vida está dura
Está cara
Não dá pra viver.
E se a dita e dura
Pra que esquecer
Que o dia vem vindo
Que o sol vai nascer
Trazendo a bonança
Trazendo a esperança
Miguel
Vai e não tarda
Miguel
Vem que é tarde
Mas, é liberdade
Mas, é liberdade…
Quando estudei em Brasília, a partir do final dos anos sessenta, Túlio Pena (violão) e eu, também fizemos músicas. Nesta minha inspiração transita entre Brasília e a Bahia, com forte influência de Dorival Caymi:
São ondas, meu bem
De luz e de mar
Profundas também
Azuis a jogar.
Inaê, Inaê, Inaê
Em teus seios
Acolhe meu corpo
Em teu corpo
Me deixa morrer
O meu ser
Sendo em água desfeito
O mar o meu leito de amor.
Inaê, Inaê, Inaê…
Uma outra do tempo de Brasília, que fiz em parceria com o músico Carlinhos Galvão, foi classificada no Festival Estudantil da Canção. Ela se chama Feira Livre:
Outras vezes
Os ventos ventaram.
Cervantes
Moinhos de vento
Soldados romanos
Os ventos.
Europa, Biafra
Brasil, Novo Mundo
O mundo partido
Em estátuas de pedras
De povos e séculos.
O sol contra o céu
em leque aberto
Ácido lisérgico
A todos vendido nas ruas
O povo reunido em torno
Do altar esperando
O povo em estado de graça
Todo o Estado na praça
Do lado de lá
Do lado de cá
Deus ex-machina
Deus ex-machina
Gregas vermelhas
coloridas nos mastros
Azuis disfarçados
Os pretos e brancos
Outras vezes
Os ventos ventaram…
Em Natal, creio que em 1979, Joel Carvalho musicou um poema meu, para participarmos de um Festival Universitário.
Joel cantou a música lá no Teatro Alberto Maranhão:
Ah, eu já provei
Da cerveja amarga do silêncio
Eu sei o que é isso
E nesta solidão
Eu já traguei tanta fumaça
Eu já despedacei meu coração
De ânsia e de saudade
Nesses botequins
De homens solitários.
Mais tarde, nas idas ao Crato, fiz músicas com Silvino.
Uma comemorava o fim das colônias portuguesas na África:
Guiné-Bissau
Angola
Moçambique
Os navios negreiros
Não tocaram mais os vossos mares
…não matarão mais os vossos filhos
Belos filhos do ventre de negras
Belas negras filhas da África
Guiné-Bissau
Angola
Moçambique
Escutem de vosso filho
Desde as senzalas da América
Este canto de alegria e liberdade.
***
Recentemente escrevi a letra para um frevo (Pense) inspirado no Bloco das Virgens.
Ela foi musicada por Elcid Moura. Depois, paguei a um músico do Crato para ele fazer o arranjo. Porém, o músico não cumpriu com o prometido, lamentavelmente.
De todo modo posso agora divulgá-la, sendo uma das poucas músicas que tenho gravada:
Pense
Nesse lance
Cabeludo
Tu é doido
Eu já vi tudo
Mas nunca vi
Tanta virgem
Pela rua
Meio vestidas
Meio nuas.
Pense
Veja, avance
Esse sinal
Sinta o transe
É carnaval
Quero ver
Milhões de virgens
Pela praça
Meia blusa
Meia calça.
Pense
O lance doido
É tudo virgem
É tudo moço
É tanta moça
Aqui na praça
Que diabo é?
Eu acho é pouco
É meio homem
Meio mulher.
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