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Músicas

Foto do escritor: Pedro de LimaPedro de Lima

Atualizado: 26 de out. de 2020


Não obstante o provincianismo e a vida paroquial, surpreendentemente, o Crato, nos anos 1960, era uma cidade bem servida de jornais e revistas.


Então, podíamos ler o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã e, principalmente, o jornal Última Hora. E nós líamos.


Geralmente, à noite, quando os jornais chegavam e eram vendidos, na praça Siqueira Campos. E, assim, ficávamos sabendo das violências praticadas pelos militares que haviam tomado o poder. Sabíamos das prisões, torturas, aposentadorias compulsórias, sequestros e mortes de trabalhadores, líderes sindicais, estudantes, intelectuais e políticos.


Líamos também a Revista Civilização Brasileira, além de livros e panfletos que eram passados de mão-em-mão pelos amigos. Além desses, também era possível ler jornais mais engajados, como o Brasil Urgente que, ainda me lembro, eram vendidos à noite na calçada do Café Líder.


Apesar da violência e do obscurantismo inerentes a qualquer ditadura, o regime militar implantado no Brasil ampliou nos jovens a curiosidade e o desejo de participar.


Aumentou a vontade de ler e de criar. Líamos para conhecer o Brasil –sua história, seus problemas sociais. Queríamos transformar o país, acabar com a miséria e as desigualdades. E o caminho para isso era combater a ditadura militar e implantar uma verdadeira democracia.


Na verdade, poucos sabiam, de fato, como seria esse Brasil do futuro. Apenas acreditávamos que era necessário fazer uma revolução! A polarização União Soviética versus Estados Unidos da América nos indicava o caminho.


Por isso, criamos jornais murais nos colégios Diocesano e Estadual, jornais mimeografados, como o jornal Nossa Opinião e jornais impressos como o Vanguarda e o Radar.


Nesses jornais publicávamos nossos artigos, poemas e contos, cujos conteúdos abordavam, principalmente, os problemas sociais responsáveis pelas desigualdades e pelo atraso do Brasil.


Também fizemos teatro e música. Ainda me lembro de duas músicas que compusemos (Zé Narcélio e eu). Como não toco nenhum instrumento, eu sempre escrevia as letras.


Uma dessas músicas se referia à guerra do Vietnam. A letra, salvo algum esquecimento, era assim:


Nasce o dia

Vem o sol

Passa a tarde

Cai a noite.

Lá no arrozal imenso

Sob o fogo da napalm

Morre gente.

Só porque

Outro dia nascer

Mais um homem

Outro homem

Morrerá no arrozal.

Morre o dia

Vai o sol

Passa a tarde

Cai a noite.

Lá no arrozal imenso

Sob o fogo da napalm

Nasce gente.

Só porque

Outro dia vai morrer

Mais um homem

Outro homem

Nascerá no arrozal.


Outra, fazia parte de uma peça de teatro, de minha autoria, que se perdeu. Dela, conservei na memória esta música, cuja melodia denuncia de imediato a influência de Chico Buarque.


Como a peça, a música se chamava Miguel e os três pães. Tratava da história de um trabalhador que roubou pães para alimentar a família e, por isso, foi preso:


Miguel

Cuidado com a vida

Cuidado com a noite

Cuidado com o dia

Cuida de Maria

Que a vida está dura

Está cara

Não dá pra viver.

E se a dita e dura

Pra que esquecer

Que o dia vem vindo

Que o sol vai nascer

Trazendo a bonança

Trazendo a esperança

Miguel

Vai e não tarda

Miguel

Vem que é tarde

Mas, é liberdade

Mas, é liberdade…


Quando estudei em Brasília, a partir do final dos anos sessenta, Túlio Pena (violão) e eu, também fizemos músicas. Nesta minha inspiração transita entre Brasília e a Bahia, com forte influência de Dorival Caymi:


São ondas, meu bem

De luz e de mar

Profundas também

Azuis a jogar.

Inaê, Inaê, Inaê

Em teus seios

Acolhe meu corpo

Em teu corpo

Me deixa morrer

O meu ser

Sendo em água desfeito

O mar o meu leito de amor.

Inaê, Inaê, Inaê…


Uma outra do tempo de Brasília, que fiz em parceria com o músico Carlinhos Galvão, foi classificada no Festival Estudantil da Canção. Ela se chama Feira Livre:


Outras vezes

Os ventos ventaram.

Cervantes

Moinhos de vento

Soldados romanos

Os ventos.

Europa, Biafra

Brasil, Novo Mundo

O mundo partido

Em estátuas de pedras

De povos e séculos.

O sol contra o céu

em leque aberto

Ácido lisérgico

A todos vendido nas ruas

O povo reunido em torno

Do altar esperando

O povo em estado de graça

Todo o Estado na praça

Do lado de lá

Do lado de cá

Deus ex-machina

Deus ex-machina

Gregas vermelhas

coloridas nos mastros

Azuis disfarçados

Os pretos e brancos

Outras vezes

Os ventos ventaram…


Em Natal, creio que em 1979, Joel Carvalho musicou um poema meu, para participarmos de um Festival Universitário.

Joel cantou a música lá no Teatro Alberto Maranhão:


Ah, eu já provei

Da cerveja amarga do silêncio

Eu sei o que é isso

E nesta solidão

Eu já traguei tanta fumaça

Eu já despedacei meu coração

De ânsia e de saudade

Nesses botequins

De homens solitários.


Mais tarde, nas idas ao Crato, fiz músicas com Silvino.

Uma comemorava o fim das colônias portuguesas na África:


Guiné-Bissau

Angola

Moçambique

Os navios negreiros

Não tocaram mais os vossos mares

…não matarão mais os vossos filhos

Belos filhos do ventre de negras

Belas negras filhas da África

Guiné-Bissau

Angola

Moçambique

Escutem de vosso filho

Desde as senzalas da América

Este canto de alegria e liberdade.


***


Recentemente escrevi a letra para um frevo (Pense) inspirado no Bloco das Virgens.

Ela foi musicada por Elcid Moura. Depois, paguei a um músico do Crato para ele fazer o arranjo. Porém, o músico não cumpriu com o prometido, lamentavelmente.

De todo modo posso agora divulgá-la, sendo uma das poucas músicas  que tenho gravada:


Pense

Nesse lance

Cabeludo

Tu é doido

Eu já vi tudo

Mas nunca vi

Tanta virgem

Pela rua

Meio vestidas

Meio nuas.

Pense

Veja, avance

Esse sinal

Sinta o transe

É carnaval

Quero ver

Milhões de virgens

Pela praça

Meia blusa

Meia calça.

Pense

O lance doido

É tudo virgem

É tudo moço

É tanta moça

Aqui na praça

Que diabo é?

Eu acho é pouco

É meio homem

Meio mulher.


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